Wednesday, March 03, 2004

O que há de interessante num Tom Hanks perdido numa ilha deserta?

Sujeito que trabalha na maior companhia de correios do mundo, no dia de ação de graças a trabalho, cai com avião. Fica perdido numa ilha deserta durante quatro anos, um dia volta para civilização, querendo reencontrar a sua namorada. Essa é a base do roteiro do filme Náufrago. Não é muito boa, uma vez que a linha central do filme acaba sendo o romance do protagonista com a namoradinha na América. A narrativa é conduzida por essa história de amor clichê, que infelizmente ao fim do filme continua isso: clichê. Para Hollywood, mais uma história de amor com Tom Hanks. A relação do Chuk Noland (Hanks), com sua namorada e futura noiva Kelly (Helen Humt), é um elemento nesse roteiro, entretanto muito mal desenvolvido. Por mais estranho que possa parecer, numa história onde alguém sobrevive ao oceano Pacífico numa jangada, o relacionamento entre os dois é o ponto menos verossímil.

E para aqueles que vão assistir o filme e tentam ver alem daquilo que geralmente se procura no filme-entretenimento ? Isso é, quem quer assistir o que está além da fórmula básica do roteiro (história de amor, ator carismático, atriz bonitinha)? Bom, nesse caso é possível dizer que Náufrago é um filme bom. Muito bom. Esse é um daqueles filmes que o que realmente importa não é o muito a narrativa, mas a maneira como esta se dá. O trabalho do diretor Robert Zemeckis foi crucial para que o filme conseguisse aproximar-se daquilo que estava na intenção inicial. A idéia do filme, o argumento era a pergunta que o ator Hanks se fez: como alguém totalmente imerso na sociedade contemporânea conseguiria sobreviver de súbito isolado numa ilha deserta? Chamou o roteirista William Broyles Jr. para colocar isso na forma de filme. Broyles jr. consegue por no pano de fundo muitos indícios que constróem o argumento central do filme. São os detalhes nas falas, nas imagens, nos sons, na trilha sonora incidental que falam mais do que a história.

O empregado da Fed Ex, companhia de correio americana de atuação internacional, tem sua vida controlada e contada pelo relógio. Frenética, ela não lhe dá chance de descansar, não lhe permite vivê-la. O discurso inicial de Noland para os contratados da filial da Fed Ex na Rússia, que carrega na importância do tempo para eles, mensageiros, revela a escravidão do homem contemporâneo ao tempo (e lembrem-se tempo é dinheiro). A música grandiosa, que no começo do filme acompanha a caixa de correio oriunda do meio-oeste americano até a Rússia, apresenta essa onipresença humana no globo. O tempo mais rápido, o espaço menor; o mundo de Chuck noland é pequeno. Os movimentos da câmera são rápidos, sempre acompanhando Noland transitar pelos outros. No jantar com a sua namorada, que ele mal vê, sente-se deslocado, é a família, mais uma obrigação. O pager toca, Chuck, o trabalhador especializado do novo capitalismo sai no meio do jantar para uma entrega de última hora. Até aí, o que temos é uma ótima demonstração do que se resume sua vida: o emprego. O relacionamento com Kelly dificilmente pode ser considerado amoroso, é uma troca de palavras obrigadas, e, com certeza seria um inferno de casamento, com divórcio depois de dez anos e duas crianças. O homem-trabalho de Hanks não tem tempo para uma família.

Cai o avião. A cena da queda é espetacular do ponto de vista cinematográfico. Sem música, só os sons do acidente e do oceano. A iluminação utilizada na cena realça a sensação de isolamento; só há fontes de luz nos pedaços flutuantes do avião em chamas. Aos poucos, vão sendo substituídos pelos relâmpagos, conforme o bote salva-vidas se distancia do local da queda. Lampejos ao acaso iluminam o bote cada vez menos, enquanto a câmera também se afasta mostrando cada vez mais o nada composto pela água salgada e pelas ondas. A chuva termina e a luz dos raios some. Tela escura, só restam os sons do oceano, até que Noland acorda na ilha. Sem carro, telefone celular, orelhão, pager, internet o mundo torna-se imenso, duas vezes a área do Texas para ser mais específico. O tempo para. A câmera estaciona. A música desaparece.

Embora no início, o homem ande de um lado para outro da ilha, não há mais ritmo frenético de filmagem, a câmera não mais acompanha o ator, está sempre fixa em algum ponto, não há música incidental, Durante dois terços do filme, o protagonista luta contra a natureza e contra a solidão. Chuck Noland não sai um vencedor do embate. Assim que garante sua sobrevivência, com pacotes náufragos da Fed Ex, a certeza que surge é a de que sobreviver não é uma vitoria por si só. O homem procura viver também. Chuck noland só sobrevive nessa ilha. Não tem emprego, não tem amigos, não tem conhecidos, não tem namorada, não tem nenhum prazer. Para ir além da sobrevivência animal, precisa de uma comunidade, precisa de um outro. Faz uma pintura rude de Kelly numa pedra e conhece Wilson, a bola de voley. Ao contrário de Robson Crusoé, o mundo selvagem não é domado pelo homem civilizado, pelo contrário, cada batalha vitoriosa de Noland é comemorada justamente porque ele sabe que a guerra está perdida. A não-vida de Chuck Nolanda quase o leva ao suicídio, à desistência. O que o salva é sua amizade com Wilson. Esse é o seu outro, seu ponto de interação social. Em quatro anos de isolamento, o comportamento esquizofrênico foi a única saída para manter o resto de sanidade possível nessa situação. Isolado, aquele namoro sem sal torna-se um ponto de referência para seu hipotético retorno à civilização. Longe dela e de seus defeitos, longe das obrigações da Fed Ex que lhe davam identidade e o aprisionavam, Noland precisa redefinir seu eu. É quando talvez a personagem de Helen Hunt se torne realmente importante para o naufrago. É isolado da civilização, de uma comunidade que ele vai perceber as coisas que realmente deveriam lhe importar. É no ostracismo, que encontra um momento de reflexão, se não para ele, para nós espectadores. O nome em português do filme perde muito dessa idéia. Náufrago tem muito mais contato com a o “sobreviver”, do que com “realmente viver” contido no original Cast Away, que tem o sentido de exílio ou exilado.
A bola, o amor são dois dos três pilares que o mantêm são. O terceiro é o único pacote que ele não abriu. Uma promessa de retorno, que o vincula ao seu eu anterior, ao seu papel de mensageiro, na chuva e no sol.

Sai da ilha, a musica retorna, acaba a epifania. Chuck vai sobreviver ao Oceano, e para chegar de novo à civilização precisa abandonar aquilo que salvou sua vida. Sua personalidade partida não resistiria ao mundo industrializado e racional. Wilson precisa morrer.
Ao chegar à América, Noland é outro, tem outra perspectiva da vida. Retorna ao mundo civilizado, a música agora é calma, suave, a câmera caminha lentamente acompanhando o ritmo vagaroso do olhar, do caminhar, dos gestos dele. Tudo é rápido, menos a câmera fixada em Hanks, que estranha o mundo. Parece estar redescobrindo a paisagem civilizada e tecnológica para o espectador. Obviamente, vai atrás de kelly, casada. Se por um lado é compreensível seu sentimento por ela, o dela por ele não faz sentido. O relacionamento dos dois era morno, lento e secundário. Ela não passou quatro anos isolada, ela teve outros com quem conviver. A atuação fraca de Helen Hunt não ajuda também, sua cara é quase sempre a mesma, sua voz é chorosa permanentemente. É uma pena que embora a lógica da história e o seu sentido apontem para a nulidade da relação, os diálogos e as interpretações tentem infrutiferamente mostrar algo de real nesse castelo de ar. Tom Hanks também incomoda nesse filme. Não é o seu bom mocismo, ou insistência em representar o papéis similares, mas o fato de querer repetir exatamente o mesmo papel. Quando está com Kelly, usa as mesmas expressões e tom de voz que usou em com Meg Ryan em Got M@il!

Mas felizmente o argumento se sustenta. Nosso herói volta da epifania e entende o conselho do diretor do filme, resolve viver. Se na ilha estava exilado, antes dela, também. Com o legado do seu passado, vive o presente e pensa no futuro. Parte numa nova jornada, voluntária. Acompanhado do seu velho carro, guardado pela ex-namorada; de uma nova bola Wilson, companheira de viagens; e de seu antigo papel social de mensageiro. Vai entregar o pacote restante, que é uma resposta à carta enviada à Rússia no início do filme (segredo que só os que assistem o filme sabem: o destinatário é uma linda ruiva provavelmente divorciada). Agora emancipado da obrigação de trabalhar, talvez devido a um processo e/ou seguro que a Fed Ex teria de lhe oferecer; pronto para enfim viver sua vida, pronto para ser livre. A encruzilhada, onde todas as possibilidades se abrem para o herói, é o melhor final possível para um filme que tenta discutir o que é sobreviver na sociedade contemporânea; sobreviver em função da máquina, do relógio, da produção, da desvalorização da sociabilidade, e principalmente, das fórmulas prontas e com final previsível dos filmes hollywoodianos.

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