Thursday, October 07, 2004

De vita in nigro albaque I

Segundo uma tradição japonesa, cada vez que se experimenta um alimento que não se conhecia, ganha-se setenta e cinco dias de vida. Será verdade o que esta tradição afirma, que há tanta beleza na descoberta que isso nos torna mais vivos? Nossos olhos e sentimentos seriam, assim, tão enriquecidos com uma inesperada felicidade e alegria após o contato com aquilo que nunca vimos antes, que nos tirariam parte do peso da passagem do tempo? Se evitarmos as armadilhas da fácil assimilação, não aplicar tradições pertencentes a culturas com pressupostos distintos e uma dinâmica diferenciada da nossa, mas apenas aproveitar suas boas idéias para inspiração, surge uma pergunta diferente: descobrir as agruras do mundo real não é, por outro lado, perder a inocência da fantasia? O nosso jeito sisudo de pensar e de viver, a nossa implicância moderna e ocidental de separar o sonho da “realidade” responderia sim a esta segunda pergunta; o filme A vida em preto e branco , sem sair do modo ocidental de ver o mundo, responde afirmativamente às duas primeiras.

Imaginem uma cidadezinha que representa o ideal do american way of life (seria ela o paraíso norte-americano?). Aquele jeito de viver dos comerciais de margarina, com a família unida e uma célula familiar perfeita: pai-mãe, filho-filha. Família que troca de carros e de eletrodomésticos a cada dois anos, em que o pai trabalha contente num emprego que nós acharíamos tedioso, com a vizinhança de subúrbio gentil e sem conflitos, sem maridos que espancam esposas e filhos; onde os filhos, se namoram, o fazem timidamente e só conhecem os segredos do sexo depois de casar. Aqui, que fique bem claro, estaríamos fazendo uma certa concessão à realidade do american way of life. A cidade é tão ideal em sua representação que se aproxima do mundo de Disney: ninguém conhece o sexo no paraíso puritano-industrial que é Pleasentville. Esta é a auto representação da sociedade americana dos anos cinqüenta; o seriado retrata um destes programas da televisão americana da época, quando rigorosos padrões morais regulavam as comunicações de massa, tanto os meios de comunicação quanto a industria cultural. Enquanto o mundo mudava, enquanto os conflitos mundiais e morais, tanto externos como internos se explicitavam, a televisão, o cinema e as histórias em quadrinhos norte-americanos eram aprisionados pelos códigos de suas respectivas indústrias. Observados pelo governo e regulamentados pelas próprias produtoras; resultado indireto, nos meios de comunicação e nas artes, da perseguição macartista à liberdade de expressão artística sob a justificativa da caça ao perigo comunista. Este é o mundo representado pelos seriados de televisão do qual o seriado Pleasantvile é uma espécie de arquétipo-estereótipo, resumo das principais e mais intensas características.

Continua no De vita in nigro albaque II

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