Tuesday, October 26, 2004

De vita in nigro albaque II

O mundo estático de Pleasantivile é o mundo do trabalho desnecessário, da prática recorrente e impensada, o mundo onde as pessoas repetem todos os dias os mesmos movimentos, sem saber o porque, um mundo sem arte, um mundo onde tudo é previsível e calculado. Se os Estados Unidos da América dos dias de hoje tem um sonho, este é o lugar: Pleasantivile. Onde há ordem e previsibilidade, onde não há conflitos e toda a sociedade, de maneira organizada, funciona e nada mais. A fala de David para o dono da lanchonete simboliza esta necessidade:
“- Você tem de fazer este o que esperam de você!
- Por Que?
- Porque as pessoas precisam comer hambúrgueres.”

Para o personagem principal, David, Pleasantville é um lugar utópico. Não está em lugar algum e não está próximo de nada. Uma rua, se perseguida até o fim retorna ao começo. A cidade é um não-lugar. Não possui, também, passagem de tempo: a narrativa da história e os acontecimentos nunca ultrapassam os limites estabelecidos pelo tempo de meia hora de um episódio, e ao começo do próximo programa, tudo está como sempre deveria estar, como sempre esteve. Lá, não há mudanças. Com a interferência dos dois personagens principais, David e Jeniffer, irmãos, Pleasentvile irrompe em brigas e discussões, preconceito e ódio, sexo e amor; perde o seu estado de idealização para tornar-se uma cidade com realidade própria. A cidade torna-se colorida, uma vez que, ante os homens e mulheres cinza, a cor é como uma espécie de agente corruptor e, ao mesmo tempo, estigma daqueles que se não agem mais de acordo com o que o resto da cidade espera.
O filme lida com o mito hebraico-cristão da Queda. A humanidade deixa o estado permanente e imutável ao entrar em contato com elementos misteriosos e proibidos pela autoridade; perde a felicidade e conhece o sofrimento. Mas o filme também é uma narrativa que se insere perfeitamente na tradição das viagens às terras do sonho, e segue suas regras: as viagens são permitidas apenas àqueles que merecem, que são puros e intocados. Desafios devem ser enfrentados, e mudanças devem acontecer nos personagens ou na terra visitada antes que os protagonistas possam retornar à normalidade. Dessa forma, David consegue ir para Pleasantvile por ser o único merecedor. O prêmio então é a oportunidade de participar deste paraíso imaculado, que não podia estar senão numa televisão. Jenniffer infiltra-se por acaso, o que também é comum nas narrativas de viagens ao desconhecido. Juntos eles se transformam e transformam Pleasantvile.
Para a religião cristã e para o judaísmo, o pecado dos dois primeiros seres humanos é terem aberto tanto o livro do conhecimento como o livro da vida. Vários elementos da história da queda de Adão e Eva estão presentes neste filme, mas com sua função invertida. David é um escapista, um desajustado, com poucos amigos e que mergulha profundamente no mundo da fantasia para fugir de sua incapacidade de se relacionar com outros seres humanos. Ele é o escolhido para viver uma semana em Plesantvile porque aquela cidade pacata sem conflitos e sem dor era o que ele buscava em sua mediocridade. A maçã e a moça chamada Eva mostram para David, não o pecado e a perdição, mas o caminho para a vida fora da sala de estar e longe da tv. O protagonista torna-se colorido ao entender o valor do desejo, ao ganhar coragem para viver. O exato oposto de sua irmã, que para tornar-se completa aprende o sabor da leitura, da descoberta e do aprendizado, Jeniffer como a Eva no paraíso prova da árvore do conhecimento, e ganha com isso algo muito valioso: sua própria emancipação.


Continua no Vita in nigor albaque III

0 Comments:

Post a Comment

<< Home