Sunday, November 14, 2004

De vita in nigro albaque III

Assim como as algumas exegeses mais humanistas da Bíblia apontam que a queda edênica é também o início da emancipação humana, esta história é sobre a passagem do estado da segurança das aparências ao risco da vida verdadeira. Não há liberdade sem responsabilidade. E liberdade é essencialmente a obrigação de fazer escolhas, escolhas o tempo todo. Em Plesantvile não haviam escolhas, tudo estava escrito, determinado, por isso também não havia arte lá, o lugar de excelência das escolhas humanas. A arte explicita, mesmo que o artista não o queira, as inúmeras trilhas que a experiência do homem pode, pôde ou poderá seguir. O vendedor de hambúrgueres rebela-se e torna-se artista de muros, as músicas de gramofone se irrompem em jazz, twist e rock. Conforme a cidade deixa de ser irreal, deixa de ser segura; não há vida sem riscos. As transformações colocadas em curso pelo desejo, pelo sexo, pelo amor, pelo prazer, pelo conhecimento, pela coragem assumir para si a responsabilidade do próprio destino têm como marco a irrupção da chuva e do fogo. O mundo não-mais-perfeito saboreia os desafios da liberdade e o maior dos desafios de estar vivo: a morte.
As cores são de uma só vez sintoma e causa das mudanças. Aos olhos dos que não querem deixar de se ver preto e branco, um estigma; para os que buscam deixar o tédio repetitivo e fugir do que lhe fora escrito (pelo destino, pelo roteirista da série, por Deus), uma sedução. A bela fotografia, o intercalar dos matizes de preto e branco com as fortes cores, não só marcam as gradações da passagem de um mundo idealizado para o mundo das contradições e dos conflitos, mas também enchem os olhos, principalmente nas cenas onde as cores e os matizes de cinza se confundem; se é possível entender a visão como um sentido emotivo, é assim que acontece, o efeito é o de inocência e de descoberta. Inocência, que não é perdida com a posse do conhecimento, mas que torna-se mais bela, e ganha sabor.
Seria possível dizer então, que esta história é uma inversão do mito da queda, mas ela não o é. Não é o negativo da bíblia. Se por um lado, não é uma queda do estado imortal causada pela infração de uma regra criada pela autoridade maior, não é também, pelo contrário, um retorno ao paraíso. É sim uma passagem de um universo estático a um mundo dinâmico como na Bíblia. Mas é mais que isso, é uma ascensão. Através de uma belíssima fábula, tipos tornam-se personagens, uma série de televisão torna-se uma cidade viva, escapa à representação de um ideal artificial e se torna uma realidade que engloba o sonho e o desejo, o medo e a dor. É uma repetição do mito edênico, não simplesmente invertida, mas com a conquista da árvore da vida. Os personagens do filme, tanto os habitantes do seriado como os invasores, mensageiros da palavra divina, tornam-se como o criador, tornam-se reais, tornam-se vivos, tornam-se livres.